Sunday, May 20, 2007


HISTÓRIA DAS IDEIAS POLÍTICAS
Docente
José Esteves Pereira
Monitora
Isabel Ribeiro
17.05.07 Sessão nº 18

Sumário

1. As reflexões de Edmund Burke(1729-1797) sobre a Revolução em França (Reflections on the Revolution in France, 1790)
a) A crítica de Burke ao racionalismo político.
b) A experiência histórica, a herança e os preconceitos.
c)O aproveitamento tradicionalista de Burke
2. A meditação de Alexis de Tocqueville(1805-1859) sobre a democracia, em La démocratie en Amérique(1835-1840):
a) O progresso das condições de igualdade
b)A ideia de providência
c) Igualdade e Liberdade
d)A religião
e)A crítica do despotismo democrático

Bibliografia recomendada:
Jean Jacques Chevalier/Yves Guchet, As Grandes Obras Políticas de Maquiavel à actualidade, Lisboa, Publicações Europa-América, 2004, pp.187-204; e 219-245
John Morrow, História do Pensamento Político Ocidental, Lisboa, Publicações Europa-América, 2007, pp.161-165

Edmund Burke

Recursos na Internet
Edmund Burke, Reflections on the Revolution in France

http://images.google.pt/imgres?imgurl=http://oll.libertyfund.org/Images/TP/0005-02_TP.jpg&imgrefurl=http://oll.libertyfund.org/Home3/HTML.php%3FrecordID%3D0005.02&h=436&w=300&sz=15&hl=pt-PT&start=2&um=1&tbnid=d8t3TRuYdcpt1M:&tbnh=126&tbnw=87&prev=/images%3Fq%3DText%2Bof%2BReflections%2Bon%2Bthe%2BRevolution%2Bin%2BFrance,%2Bby%2BEdmund%2BBurke%2B%26svnum%3D10%26um%3D1%26hl%3Dpt-PT%26sa%3DN

Alexis de Tocqueville, Obras Completas( pesquisar em http://gallica.bnf.fr/ a partir do link, recherche
Enquadramento
http://xroads.virginia.edu/~HYPER/DETOC/toc_indx.html
Sobre o providencialismo de Tocquevillehttp://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0011-52581997000200002&script=sci_arttext


HISTÓRIA DAS IDEIAS POLÍTICAS
Docente
José Esteves Pereira

Monitora
Isabel Ribeiro

Apeamento da estátua de Jorge III

15.05.07 Sessão nº 17

Sumário
Aspectos teóricos e político-ideológicos em torno da Revolução Americana e da Revolução Francesa.
Análise dos pressupostos doutrinários de alguns textos constitucionais.

A Constituição dos Estados Unidos numa publicação portuguesa, de 1822, da Typographia Rollandiana
Bibliografia recomendada.
Edward Countryman, The People's American Revolution, BAAS Pamphlet No. 13(http://www.baas.ac.uk/resources/pamphlets/pamphdets.asp?id=13)
Viriato Soromenho Marques, A filosofia constitucional do federalismo-Estudo introdutório à edição portuguesa de O Federalista, in Alexander Hamilton/James Madison/ John Jay, O Federalista, tradução, introdução e notas de Viriato Soromenho Marques e Joâo C.S. Duarte, Lisboa, Edições Colibri, 2003, pp. 15-34.
Jacques Godechot, Les Constitutions de la France depuis 1789, Paris, Garnier-Flammarion, 2006(Textos introdutórios).

Perante a desigualdade de nascimento, de condição social, desigualdade nos impostos e na justiça, a França de Antigo Regime descarrega sobre as costas do Terceiro-Estado (burgueses, artesãos, camponeses...) pesadas despesas. As reformas empreendidas para uma melhor distribuição dos encargos não resulta. Turgot (1774-1776), Necker (1777-1781), Calonne (1783-1787) defrontam-se com o muro dos privilégios. A crise agrícola, industrial, comercial, social conduzem ao fosso de 1789.

Sunday, May 13, 2007

HISTÓRIA DAS IDEIAS POLÍTICAS
Docente
José Esteves Pereira
Monitora
Isabel Ribeiro

10.05.07 Sessão nº 16
Sumário:
Leitura comentada de textos do Ensaio sobre o Governo Civil(1690), de John Locke e de Do Contrato Social ou Princípios de Direito Público(1762), de J. J. Rousseau.

Textos



John Locke, Ensaio sobre o Governo Civil, Cap. VIII(Do Princípio das sociedades políticas)



CAPÍTULO VIII.

DO PRINCIPIO DAS SOCIEDADES POLÍTICAS.

95. Sendo todos os homens, como já se disse, naturalmente livres, iguais, e independentes, ninguém pode ser posto fora deste estado e sujeito ao poder o politico doutro, sem o seu próprio consentimento. O único meio por onde qualquer se priva da sua liberdade natural, e se liga à sociedade civil, é convindo com outros homens em se ajuntar e unir com eles em sociedade civil, a fim de haver segurança, paz, e sossego entre eles, e obterem um gozo seguro das suas propriedades, e uma segurança maior contra qualquer que não pertence à mesma sociedade. Isto qualquer número de homens o pode fazer; pois que não prejudica a liberdade dos outros, os quais se deixam na mesma liberdade do estado natural em que estavam. Todas as vezes que qualquer número de homens der um tal consentimento para se fazer uma sociedade civil ou governo, eles por esse facto ficam incorporados e formados em corpo político, aonde a maioria tem direito a governar.
96. Porquanto, quando qualquer número de homens estabelece com consentimento de cada indivíduo uma sociedade civil, eles por esse facto constituem essa sociedade como um corpo com poder de obrar como tal, o que é unicamente pela vontade e determinação da maioria: porquanto, sendo o consentimento dos seus indivíduos unicamente o que dirige a sociedade, é necessário que essa sociedade, que é um corpo só, se mova para aquela parte pura onde a maior força o conduz, a qual é o consentimento da maioria: do contrário, é impossível poder obrar, ou continuar a ser um corpo, uma comunidade, em que consentiu cada individuo que entrou nela; portanto, todos estão obrigados em consequência desse consentimento a ser governados pela maioria. E por isso nós vemos que nas assembleias autorizadas a obrar por meio de leis positivas, quando a lei positiva que os autoriza não determina número certo, o acto da maioria passa como acto do todo, e por conseguinte decide como se tivesse pela lei natural e da razão o poder do todo.
97. Portanto todo o homem pelo acto de convir com outros em formar um corpo político debaixo dum governo, se obriga para com cada um dos dessa sociedade a se submeter à determinação da maioria, e de ser governado por ela; ou alias este pacto original, por meio do qual ele se incorpora com outros numa sociedade, não valeria coisa alguma, e não seria pacto, se ele tivesse sido deixado livre, e sujeito a nenhuns outros vínculos ou obrigações que aquelas que ele tinha no estado natural. Que aparência pois podia haver dum pacto ou promessa, se as determinações da sociedade o não obrigassem a mais do que àquilo que ele mesmo julgasse conveniente, e a que tivesse prestado o seu consentimento? Isto seria ter uma liberdade tão grande como a que ele tinha antes de ter feito o pacto, ou como tem qualquer outro no estado natural, o qual se pôde submeter e consentir a quaisquer dos seus actos, se o julgar a propósito.
98. Porquanto, se o consentimento da maioria se não receber como o acto do todo, e não abranger a todo o indivíduo, nenhuma outra coisa, que não seja o consentimento de cada indivíduo, pode fazer o acto do todo: porém um consentimento tal é imediato ao impossível, considerando nós as enfermidades, e as imensas ocupações que num número ainda mesmo muito menor que o duma república, necessariamente apartam a muitos da assembleia publica. E se nós acrescentar-mos a isto a variedade de opiniões e a contrariedade de interesses, que existem inevitavelmente em todos as corporações de homens, o entrar para a sociedade debaixo de tais cláusulas seria somente como a entrada de Catão no teatro, unicamente para tornar a sair. Uma constituição tal como esta faria o poderoso leviatã duma duração mais curta do que as criaturas as mais fracas; e não o deixaria passar além do dia em que nasceu: o que se não pode supor enquanto não julgar-mos que as criaturas racionais desejam e constituem sociedades unicamente para se dissolverem: porquanto, aonde a maioria não pôde dirigir o resto, aí não podem obrar como um corpo só, e por consequência se dissolverão imediatamente outra vez.
99. Por conseguinte, deve-se entender que todo aquele que sair do estado natural para se unir em sociedade civil, cede todo o poder que for necessário aos fins para que ele se uniu à maioria da sociedade, salvo se eles convierem expressamente em algum número maior do que o da maioria. E isto acontece pelo simples acto de convir em se unir em sociedade política, o que vem a ser todo o pacto que há, ou que é preciso entre os indivíduos que fazem ou compõem uma república. Portanto, aquilo que dá princípio e com efeito constitui uma sociedade politica, não é outra coisa mais do que o consentimento de qualquer número de homens livres, que tem o uso da razão para se unirem e incorporarem numa sociedade tal. E é isto o que, e somente isto o que deu ou podia dar principio a todo e qualquer governo legitimo.
100. Acho duas objecções feitas contra isto.
Primeira. Que na historia se não acham exemplos duma companhia de homens independentes e iguais entre si que se encontrassem, e que começassem e estabelecessem um governo desta maneira.
Segunda. Que é contra todo o direito que homens assim fizessem, por isso mesmo que nascendo todos os homens debaixo dum governo, eles se lhe devem submeter e não têm a liberdade de começar um de novo.
101. Em resposta à primeira direi, que não é de admirar que a história nos dê uma relação tão limitada dos homens que viverão juntos no estado natural. As inconveniências daquele estado, o amor e a necessidade da sociedade, logo que uniu alguns deles, imediatamente os incorporou, se é que eles tinham intenção de continuar a viver juntos. E se acaso nós não podemos supor que os homens estivessem jamais no estado natural, por ter-mos poucas notícias deles nesse estado, podemos igualmente supor que os exércitos de Salmanassar ou de Xerxes nunca foram meninos, por isso mesmo que temos pouca notícia deles antes de serem homens e estarem incorporados em exércitos. O governo é em toda a parte anterior à memória dos homens, e as letras de ordinário não se introduzem num povo senão depois de ter existido por muito tempo em sociedade civil, e de ter cuidado noutras artes mais necessárias para a sua segurança, bem estar, e abundância: e é então que ele começa a indagar a história dos seus fundadores, e a examinar a sua origem, quando tem sobrevivido à sua memória: pois acontece às repúblicas, bem como às pessoas particulares, o ignorarem, normalmente as suas próprias origens e infâncias: e se sabem alguma coisa da sua origem, elas o devem às memórias acidentais que outros têm conservado a tal respeito. E aquelas que nós temos do começo das diferentes formas de governos que tem havido, à excepção da dos Judeus, aonde o mesmo Deus se interpôs imediatamente, e que não favorece de maneira alguma o domínio paternal, são todas ou exemplos claros dum principio tal qual eu mencionei , ou ao menos. tem sinais evidentes disso.
102. Na verdade, é bem notável a inclinação de negar a matéria evidente do facto quando se não conforma com a hipótese daquele que não quer conceder que a origem de Roma e Veneza começou pela união dalguns homens livres e independentes uns dos outros, e entre os quais não havia sujeição ou superioridade alguma natural. E se dermos crédito ao que diz Joseph Acosta, em muitas partes da América não havia qualidade alguma de governo. «Há grandes e evidentes conjecturas,» diz ele, «que estes homens,» falando dos do Peru, «por muito tempo não tiveram nem Reis nem Repúblicas, mas andavam em bandos, como andam hoje em dia na Florida os Cheriquanas, os do Brasil, e outras muitas nações, que não têm Reis certos, mas, segundo o exige a paz ou a guerra, assim escolhem os seus capitães segundo lhes parece,» lv. 1. c.25. Se se disser que aí todo o homem nasceu sujeito a seu pai, ou ao chefe da sua família, que a sujeição que um filho deve a seu pai não o privou da liberdade de se unir aquela sociedade política que lhe pareceu; isso já está demonstrado. Mas, seja como for, é claro que estes homens eram com efeito livres: e não obstante qualquer superioridade que alguns políticos constituiriam presentemente em qualquer deles, eles mesmos não a pretendiam; mas eram todos iguais por consentimento, até que pelo mesmo consentimento estabeleceram governantes sobre si mesmos. De maneira que todas as suas sociedades políticas procederam duma união voluntária, e do consentimento mútuo de homens que obraram livremente na escolha de seus governadores e forma do seu governo.
103. E eu espero que se concederá que aqueles que se apartaram de Esparta com Palantus, mencionados por Justino, lv. 3. c. 4, foram homens livres e independentes uns dos outros, e que estabeleceram por seu próprio consentimento um governo sobre si mesmos. Tenho pois referido vários exemplos tirados da história, de povos livres que estando no estado natural, e encontrando-se, se incorporaram, e principiaram uma república. E se a falta de tais exemplos servir de argumento para provar que o governo não principiou, nem podia principiar assim, julgo que os defensores do império paternal fariam melhor em não a mencionar do que, servir-se dela contra a liberdade natural. Porquanto, se é que eles podem referir outros tantos exemplos tirados da história, de governos começados no direito paternal, julgo (ainda que segundo a boa razão, um argumento do que tem sido, para o que por direito devia ser, não tem grande força,) que se podia, sem grande risco, ceder-lhes a causa. Se me fosse porém permitido aconselhá-los sobre o caso, eles fariam bem em não examinar demasiadamente na origem dos governos o modo porque eles principiaram de facto, a fim de não descobrirem na fundação da maior parte deles alguma coisa muito pouco favorável ao intento que eles favorecem, e a um poder tal qual eles defendem.
104. Tendo nós porém claramente mostrado que os homens são naturalmente livres, e os exemplos tirados da história mostrando-nos que os governos do mundo que começaram em paz tinham firmado o seu princípio nesse alicerce, e foram feitos por consentimento do povo; pouco lugar pode haver para duvidar em que consiste o direito, ou qual tem sido a opinião ou prática do género humano sobre a primeira formação dos governos.
105. Eu não negarei, que se nós indagar-mos a origem das repúblicas tanto quanto a história nos encaminha, geralmente as acharemos debaixo do governo e administração dum só homem. E também me inclino a crer que aonde uma família era assaz numerosa para subsistir por si só, e que continuou a viver toda junta sem se unir com outras, como acontece frequentemente naquela partes aonde há muito terreno e pouco povo, o governo começou comummente no pai. Porquanto, tendo o pai pela lei natural o mesmo poder que tem qualquer outro homem para punir, segundo ele julgar que é justo, quaisquer ofensas contra essa lei, podia por essa razão punir os seus filhos transgressores, mesmo depois de serem homens e estarem fora da sua tutela; e é muito provável que eles se sujeitassem ao seu castigo, e que todos eles se unissem alternadamente com ele contra o transgressor, dando-lhe por este meio o poder de executar a sua sentença contra qualquer transgressão, e fazendo-o deste modo o legislador e governante de todos os que estavam em conjunção com a sua família. Ele era aquele em quem mais se podia confiar; pois que a afeição paternal segurava a sua propriedade e interesses debaixo de seu cuidado; e o costume de lhe obedecer na sua infância inclinava-os antes à sujeição do pai do que à doutro qualquer. Porquanto se é preciso que eles tenham um homem que os governe, pois que o governo mal se pôde evitar entre homens que vivem juntos, quem mais provável e próprio para o ser do que aquele que é o seu pai comum, excepto se a negligência, crueldade, ou qualquer outro defeito da mente ou do corpo, o fez incapaz para isso? Mas quando acontecesse morrer o pai, e deixar o seu herdeiro imediato com pouca ou nenhuma capacidade para governar, por falta de idade, saber, coragem, ou quaisquer outras qualidades; ou quando algumas famílias se ajuntaram e consentiram em continuar a viver juntas; não se pode duvidar que então eles se serviram da sua liberdade natural para eleger aquele que julgaram o mais hábil, e o mais capaz para os governar bem. Semelhante a isto achamos aqueles povos da América, que, vivendo fora do alcance das espadas vencedoras e crescente dominação dos dois grandes impérios do Peru e México, gozaram a sua liberdade natural, e ainda que, coetereis paribus, eles comummente preferem o herdeiro do seu Rei defunto; todavia se eles o acham fraco ou incapaz, então não fazem caso dele, e elegem para seu director o homem mais robusto, o mais bravo, e o mais capaz.
106. Portanto, não obstante ver-mos, se examinarmos tanto quanto poder-mos as memórias acerca do princípio da povoação do mundo, e a História das nações, que o governo estava comummente num só homem; todavia isso não torna fútil aquilo que eu armo, viz. que o princípio da sociedade politica depende dos indivíduos consentirem em se unir e fazer uma sociedade; a qual, quando eles assim e acham incorporados, pode estabelecer aquela forma de governo que melhor lhe parecer. Sendo isto porem o que deu lugar a que os homens se enganassem, e julgassem que o governo era naturalmente monárquico, e que pertencia ao pai, não será fora, de propósito examinar-mos neste lugar a razão porque no principio o povo escolheu geralmente esta forma de governo ; e ainda que fosse talvez a preeminência do pai o que lhe deu lugar na primeira instituição dalgumas republicas, e que no principio instituiu o poder num só homem; todavia é claro que a razão porque se continuou com a forma do governo duma única pessoa não era por atenção ou respeito à autoridade paternal; visto que todas as monarquias pequenas, que são quase todas elas, foram quase no seu principio comummente electivas, ou pelo menos em algumas ocasiões.
107. No principio pois, o governo que o pai exercia sobre os seus meninos tendo-os acostumado ao governo dum só homem, e ensinando-lhes que ele, quando se exercia com cuidado e habilidade, com afabilidade e amor para com os que lhe estão sujeitos, era suficiente para procurar e dar aos homens toda a felicidade politica que eles procurarão na sociedade; não é para admirar que eles escolhessem, e naturalmente estabelecessem aquela forma de governo, à qual eles tinham estado acostumados desde a sua infância, e que por experiência tinham achado não só cómoda como também segura. E se acrescentar-mos a isto, que a monarquia sendo simples e a mais clara para os homens, a quem nem a experiência tinha instruído sobre as formas de governo, nem a ambição ou arrogância do império tinha ensinado a se acautelarem das usurpações da prerrogativa, ou das inconveniências do poder absoluto; não era de admirar que eles não cuidassem muito em pensar sobre os meios de restringir quaisquer exorbitâncias daqueles a quem tinham dado autoridade sobre si, e de pôr em equilíbrio o poder do governo, constituindo algumas das suas partes em diversas mãos., Eles ainda não tinham sentido a opressão do domínio tirânico, nem o espírito do século, nem as suas possessões, ou maneira de viver, (o que pouco motivo dava à cobiça ou ambição,) lhes deu motivo algum para o temer ou prevenir: e por isso não é de admirar que eles se constituíssem debaixo duma tal forma de governo, a qual não somente era, como já disse, a mais clara e simples, mas também a mais própria para a sua condição e estado presente, que tinha mais necessidade de defesa contra as ofensas e invasões externas do que de multiplicidade de leis. .A igualdade de uma simples e humilde maneira de viver, limitando os seus desejos dentro dos estreitos limites da pequena propriedade de cada um, causou poucas controvérsias, e por isso não eram precisas muitas leis para as decidir, nem muitos funcionários para superintender os processos, ou fazer executar a justiça, aonde havia poucas ofensas e poucos ofensores. E como se não pôde deixar de supor que entre aqueles que se estimam mutuamente a ponto de se unirem em sociedade há algum conhecimento e amizade, e alguma confiança uns nos outros; por isso o seu primeiro cuidado e pensamento não podia ser senão sobre o modo porque eles se deviam segurar contra a força externa: e por conseguinte era-lhes natural o constituírem-se debaixo daquela forma de governo, que melhor lhes pudesse servir para esse fim; e escolherem o homem mais sábio e o mais bravo para os conduzir nas suas guerras, e capitaneá-los contra os seus inimigos; no que consistia principalmente o seu governo.
108. Porquanto, nós vemos que os Reis dos Índios da América são, o que é ainda uma amostra dos primeiros séculos da Ásia e da Europa, enquanto os habitantes eram demasiadamente poucos para o país, e a falta do povo e do dinheiro não incitou os homens a alargar as suas possessões de terreno, nem causou disputas por maiores extensões de herdades, pouco mais que generais de seus exércitos; ; e ainda que eles na guerra comandam com poder absoluto; todavia em casa e em tempo de paz exercem uma jurisdição muito limitada, e tem uma soberania muito moderada; pois que de ordinário as resoluções de paz e guerra estão ou no povo ou num concelho; ainda que a guerra, a qual não admite a pluralidade de governantes, se devolve naturalmente por si mesma à única autoridade do Rei.
109. E assim, até mesmo em Israel, a principal ocupação dos seus juízes e primeiros Reis parece ter sido a de capitães na guerra e chefes de seus exércitos, o que (além do que se declara nas palavras, «saindo e entrando diante do povo,» o que era para marchar para a guerra, e depois para casa, à frente das forças,) claramente se vê da história de Jefté. Os Amonitas fazendo a guerra a Israel, os Gaaladitas com medo mandam a Jefté um bastardo da sua família, que eles tinham expulso, para estipular com ele, se ele queria assisti-los contra os Amonitas, e para o fazer o seu chefe; o que eles fazem nestas palavras, «e o povo fê-lo seu cabeça e capitão,» [«O povo nomeou-o chefe e comandante», na tradução contemporânea] Juízes XI, 11
2, o que era, segundo parece, o mesmo que ser juiz. «E ele julgou Israel» [ou «Jefté foi juiz em Israel durante seis anos»] Juízes XII, 7, isto é, era o seu capitão-general, «seis anos.» Assim quando Joatão exprobra aos Sechemitas a obrigação que eles deviam a Gedeão, o qual tinha sido o seu juiz e director, ele diz-lhes, «ele bateu-se por vós, arriscou grandemente a sua vida, e vos libertou do poder de Madiã,» [«O meu pai lutou por vós e até arriscou a vida para vos livrar do poder de Madiã.»] Juízes IX, 17. Nada se menciona dele senão aquilo que ele fez como general; e com efeito isso é tudo o que se acha na sua história, ou na de qualquer dos outros juízes. E Abimelec é o que com particularidade é chamado Rei, ainda que quando muito era unicamente seu general. E no tempo em que os filhos Israel, estando enfadados da má conduta dos filhos de Samuel, desejarão hum Rei, «à semelhança de todas as nações, para os julgar, marchar à sua frente, e dirigir as suas batalhas,» [«seremos também como as outras nações: o nosso rei governar-nos-á, irá à nossa frente para comandar as nossas guerras.»] 1.º Livro de Samuel VIII, 20. Deus concedendo-lhes o seu desejo, diz a Samuel, «Eu vos mandarei um homem, e tu o ungirás para ser capitão do meu povo Israel, a fim de que ele possa livrar o meu povo do poder dos Filisteus,» [«vou mandar-te um homem da terra de Benjamim. Tu ungi-lo-ás como chefe do meu povo Israel, e ele libertará o povo do poder filisteu«] 1 Sam IX, 16, como se a única ocupação dum Rei tivesse sido a de capitanear os seus exércitos, e pelejar em sua defesa; e tanto assim que no acto da sua inauguração, lançando sobre ele um vaso de azeite, ele declara a Saúl que «o Senhor o tinha ungido para ser capitão da sua herança,» [«Eis o sinal de que Javé te ungiu como chefe da sua herança»] cap. X. ver. 1. E por isso aqueles que, depois de Saúl ter sido solenemente escolhido e saudado por seu Rei pelas tribos em Mispah, estavam com repugnância de o aceitar por seu Rei, não fazem outra objecção senão esta, «Como é que este homem nos há de salvar ?» [«Como é que este indivíduo nos poderá salvar»] ver. 27, como se eles dissessem, «Este homem é incapaz de ser nosso Rei, não tendo nem habilidade bastante, nem perícia da guerra para nos poder defender.» E quando Deus se resolveu a transferir o governo para David, é nestas palavras, «Mas agora o teu reinado não há de continuar: o Senhor procurou-lhe hum homem da sua escolha, e o Senhor lhe ordenou de ser capitão do seu povo,» [«Agora, porém, o teu reinado não se firmará. Javé encontrou um homem conforme o seu coração e nomeou-o chefe do seu povo»] cap. XIII, ver. 14. Como se toda a autoridade de Rei não consistisse em outra coisa senão o de ser general: e por isso as tribos que se tinham unido à família de Saúl, e oposto ao reinado de David, quando vieram a Hebron com termos de submissão a ele, elas dizem-lhe, que alem doutras razões que elas tinham para se lhe submeterem como a seu Rei, ele com efeito era o seu Rei no tempo de Saúl, e que por isso elas não tinham razão alguma para agora deixarem de o receber como tal. «Também,» dizem elas, «noutro tempo, quando Saúl era nosso Rei, tu foste o que nos conduzistes para fora, e que nos trouxeste para Israel; e o Senhor te disse, tu sustentarás o meu povo Israel, e serás o capitão de Israel.
110. Portanto, quer uma família chegasse, por degraus a fazer uma república, e a autoridade paternal continuasse no filho mais velho, crescendo cada um por sua vez debaixo dela, e submetendo-se-lhe tacitamente, a sua facilidade e igualdade não ofendendo a pessoa alguma, todos se acomodaram, até que o tempo pareceu tê-la confirmado, e estabelecido o direito de sucessão por prescrição: quer várias famílias, ou os descendentes de várias famílias, a quem o acaso, vizinhança, ou ocupação juntou, constituindo todos uma sociedade, a falta dum general, cuja conduta os pudesse defender na guerra contra os seus inimigos, e a grande confiança, a inocência e sinceridade daquela pobre mas virtuosa época, (tais são quase todas aquelas que principiam governos, cuja duração porém é sempre curta,) que os homens tinham uns nos outros, fizesse com que os primeiros principiantes de republicas dessem geralmente a administração a hum só homem, sem mais limitação ou restrição expressa do que aquela que a natureza da coisa e fita do governo exigia: é certo que o primeiro que no princípio entregou a administração a uma pessoa só, não lha confiou senão para o bem e segurança publica, e para esse fim comummente a usaram nas infâncias das repúblicas. E se aqueles que tinham esta administração não tivessem assim feito, as sociedades principiantes não podiam ter subsistido: sem uns tais pais criadores, afáveis e cuidadosos do bem público, todos os governos teriam perecido com as fraquezas e enfermidades da sua infância, e o mesmo Príncipe teria perecido em pouco tempo juntamente com o povo.
111. Porém, ainda que a idade de ouro (antes que a ambição vã, e, amor sceleratus habendi, a depravada concupiscência tivesse pervertido as mentes humanas no erro do verdadeiro poder e honra) tinha mais virtude, e por consequência melhores governantes, bem como súbditos menos viciosos; e não havia então prerrogativa que oprimisse o povo; nem por conseguinte disputa alguma sobre privilégio para diminuir ou restringir o poder do magistrado; e por isso nenhuma contenda entre os directores e o povo acerca dos governantes ou governo; todavia, nas idades futuras
3 quando a ambição e luxúria queria reter e aumentar o poder, faltando aos fins para que ele foi dado, e, auxiliada pela lisonja, ensinou aos Príncipes a ter interesses distintos e separados dos de seu povo, os homens então julgaram necessário examinar com mais cuidado a origem e direitos do governo; e de excogitar meios para restringir a exorbitância, e prevenir os abusos daquele poder, que eles tinham confiado nas mãos doutrem unicamente para o seu próprio bem, mas que se usava e empregava em seu prejuízo.
112. Portanto, é muito provável que o povo, que era naturalmente livre, e que por seu consentimento próprio ou se sujeitou ao governo de seu pai, ou de diferentes famílias se uniu debaixo dum governo, constituísse geralmente a administração nas mãos dum só homem, e escolhesse o governo duma única pessoa, sem ao menos limitar ou regular o poder por meio de condições expressas; pois que o julgou bastantemente seguro na sua honestidade e prudência; não obstante ele nunca ter sonhado que a monarquia era jure divino, o que nós nunca ouvimos entre o género humano, senão depois que a divindade deste ultimo século no-lo revelou; nem ter jamais reconhecido no poder paternal o direito de domínio, ou a base de todo o governo. Portanto isto é assaz para provar, que até onde a historia nos esclarece, nós temos razão para concluir, que todo o governo que teve princípios pacíficos foi fundado no consentimento do povo: digo pacíficos, porque em outro lugar terei a ocasião de falar da conquista, a qual é tida por alguns como hum meio de principiar os governos.
A outra objecção que eu acho proposta contra o princípio das sociedades politicas é esta, viz.
113. Que nascendo todos os homens debaixo dum governo qualquer, é impossível que quaisquer deles estivessem livres em tempo algum, e em liberdade de se unir uns com os outros, e começar hum de novo, ou que chegassem em tempo algum a poder erigir um governo legítimo.
Se acaso isto é um bom argumento, pergunto como é que se introduziram tantas monarquias legítimas? Porquanto, se qualquer, debaixo desta suposição, for capaz de me mostrar um único homem, que em qualquer século do mundo estivesse livre para principiar uma monarquia legitima; eu me obrigo a mostrar-lhe outros dez homens livres com liberdade de se unir e principiar hum governo novo debaixo duma forma monárquica, ou de qualquer outra: pois que é evidente, que se alguém há, nascido debaixo do domínio doutrem, que seja tão livre que tenha o direito de governar outros num império novo e distinto; todo aquele que é nascido debaixo do domínio doutro pode ser igualmente tão livre como ele, e pôde por consequência vir a ser hum governante ou súbdito dum governo distinto e separado. Portanto, segundo este princípio, ou todos os homens, nascidos de qualquer maneira, são livres, ou então não há no mundo senão hum Príncipe, e um governo legítimo. E em tal caso, aqueles que fazem a objecção não tem mais nada a fazer do que mostrar-nos simplesmente quem é esse Príncipe e esse governo: e logo que o tiverem feito, eu não duvido que então todo o género humano convirá em lhe obedecer.
114. Não obstante ser uma resposta suficiente para a objecção deles o mostrar, que ela os envolve nas mesmas dificuldades que envolve aqueles contra quem eles a usam; todavia, eu me esforçarei a patentear mais alguma coisa a fraqueza deste argumento.
Todos os homens, dizem eles, nascem debaixo dum governo; e por isso não podem ter a liberdade de principiar hum de novo. Todo o homem nasce sujeito a seu pai, ou a seu príncipe; e por isso está debaixo do vínculo perpétuo de sujeição e obediência. É bem claro que o género humano sem seu próprio consentimento nunca reconheceu nem considerou tal sujeição natural em que ele nasceu, ou em respeito a um, ou em respeito ao outro, como uma sujeição a ele e a seus herdeiros.
115. Porquanto, não há na história tanto profana como sagrada exemplos mais frequentes do que aqueles dos homens se apartarem da obediência e jurisdição do governo debaixo de que nasceram, ou da família e sociedade em que foram educados, e de estabelecerem governos novos em outros lugares; donde procederam tantas repúblicas pequenas; as quais foram sempre aumentando, enquanto houve espaço bastante, até que o mais forte, ou o mais afortunado, absorveu o mais fraco; e essas grandes repúblicas desfazendo-se outra vez, constituíram de novo domínios menores. O que tudo são depoimentos contra a soberania paternal, e provam claramente que não foi o direito natural que estabeleceu no princípio os governos; visto que era impossível que sobre essa base pudessem ter havido tantos domínios pequenos: tudo deveria ser uma única monarquia universal, se os homens não tivessem tido a liberdade de se separar das suas famílias e do governo, fosse ele qual, fosse, que estava estabelecido, e de constituir repúblicas e governos distintos, segundo eles julgaram conveniente.
116. Esta tem sido a prática do mundo desde o seu princípio até hoje. E o ser nascido presentemente debaixo de estabelecidas e antigas sociedades políticas, que estabeleceram leis e formas de governo, não impede mais a liberdade do género humano, do que se ele fosse nascido nos bosques entre os desenfreados habitantes que neles andam vagueando. Porquanto, aqueles que nos querem persuadir que o acto de nascer-mos debaixo dum governo nos sujeita naturalmente a ele, e que não temos direito ou pretensão alguma à liberdade do estado natural, não tem outra razão a dar, excepto a do poder paternal, (a que nós já respondemos) senão que nossos pais ou progenitores cederam a sua liberdade natural, e que por esse facto se obrigaram a si mesmos e à sua posteridade a uma sujeição perpétua, ao governo, a que eles mesmos se submeteram. É verdade que todo o homem está obrigado a cumprir com os pactos e promessas que fez por si; mas não pode por meio de pacto algum obrigar a seus filhos ou posteridade: porque, sendo o seu filho, quando já homem, tão livre como o pai, ele não tem mais direito a ceder a liberdade do filho do que a doutro qualquer. Ele pode na verdade anexar à terra, que possui como súbdito de alguma república, condições tais, que obriguem a seu filho a pertencer a essa república, uma vez que ele queira desfrutar as possessões que foram de seu pai; pois que sendo essas possessões propriedade de seu pai, ele pode dispor delas segundo lhe agradar.
117. E isto é o que geralmente tem dado lugar a se errar sobre este assunto; porque, não permitindo as repúblicas o desmembramento de parte alguma de seus domínios, nem que os outros, que não pertencem à sua sociedade, a possuam, o filho de ordinário não pode desfrutar os bens de seu pai senão debaixo das mesmas condições com que este os desfrutou, i. e. fazendo-se membro da sociedade; por meio do que, ele fica tão sujeito ao governo que aí acha estabelecido, como qualquer outro súbdito dessa república. E assim, sendo o consentimento dos homens livres nascidos debaixo de um governo, o qual é o que unicamente os faz seus membros, prestado por cada um em separado, segundo cada um chega a ter a idade, e não simultaneamente por todos; os homens não reparam nisso, e julgando que não há tal consentimento, ou que não é necessário, concluem que eles são naturalmente súbditos, logo que são homens.
118. É claro porém que os mesmos governos o entendem doutra maneira: eles não pretendem ter poder sobre o filho, por o terem sobre o pai, nem têm as crianças como seus súbditos, por os seus pais o serem. Se um súbdito Inglês tiver em França um filho duma Inglesa, de quem é ele súbdito? Não do Rei da Inglaterra; porque ele necessita de licença para ser admitido aos privilégios de súbdito Inglês; nem do Rei da França; porque se o fosse, que direito tinha seu pai a tirá-lo de lá, e a educá-lo segundo lhe agradar? E quem é que jamais foi julgado como traidor ou desertor, se ele deixou ou pelejou contra um país, por ter simplesmente nascido nele de pais que aí eram estrangeiros? Portanto, é claro, não só pela prática dos mesmos governos como também pela lei da recta razão, que um filho não nasce súbdito de país ou governo algum. Ele está debaixo da tutela e autoridade de seu pai até que chegue a idade da discrição; e então ele é um homem livre, e tem a liberdade de se sujeitar àquele governo que ele quiser, e de se unir ao corpo político que lhe agradar. Porquanto se o filho de um Inglês nascido em França é livre, e pode assim fazer, é claro que o acto de seu pai ser um súbdito deste reino o não obriga a coisa alguma; nem tão pouco pacto algum dos seus antepassados. E qual é então a razão porque seu filho não há de ter a mesma liberdade, ainda. que ele nasça em qualquer outra parte? Visto que o poder que um pai tem naturalmente sobre seus filhos é o mesmo aonde quer que eles nasçam; e que os vínculos da obrigação natural não estão demarcados pelos limites positivos dos reinos e repúblicas.
119. Sendo todo o homem, como já se demonstrou, naturalmente livre, e nada sendo capaz de o sujeitar a poder algum terrestre senão o seu próprio consentimento, deve-se considerar, que é o que se deve julgar como uma declaração suficiente do consentimento dum homem para o sujeitar ás leis de qualquer governo. Há uma distinção comum entre o consentimento tácito e o expresso, o que dirá respeito ao nosso caso presente. Ninguém duvida que o consentimento expresso de qualquer homem que entra para qualquer sociedade o faz hum membro perfeito dessa sociedade, um súbdito desse governo. A dificuldade está em saber o que é que se deve ter como um consentimento tácito, e até que ponto obriga, i. e. até que ponto é que se deve julgar que qualquer consentiu, e se submeteu a algum governo, não tendo ele praticado expressões algumas de consentimento. E a isto direi eu, que todo o homem que tem alguma possessão, ou usufruto de qualquer parte dos domínios de algum governo, nos manifesta por esse facto um consentimento tácito, e está tão obrigado à obediência das leis desse governo durante tal usufruto como qualquer outro dessa sociedade ; quer essa sua possessão consista em terra, para ele e seus herdeiros perpetuamente, ou unicamente num aposento por uma semana; quer consista em viajar livremente pela estrada: e com efeito esta sujeição estende-se a tanto quanto é a estada de qualquer dentro dos territórios desse governo.
120. Para melhor entender-mos isto, devemos lembrar-nos que todo o homem, quando se incorpora nalguma república, lhe anexa e sujeita igualmente aquelas possessões que ele tem, ou que poderá vir a ter, e que já não pertencem a outro governo. Porquanto seria uma contradição directa o entrar qualquer em sociedade com outros a fim de segurar e regular a propriedade, e supor todavia que a sua terra, cuja propriedade deve ser regulada pelas leis da sociedade, havia de ficar isenta da jurisdição daquele governo a que ele mesmo, o proprietário da terra, está sujeito. Portanto, aquele mesmo acto que qualquer pratica para unir a sua pessoa, que dantes era livre, a alguma república; esse mesmo une igualmente as suas possessões, que dantes eram livres, à mesma república, e tanto a pessoa como a possessão se constituem sujeitas ao governo e domínio dessa república enquanto existe. Por isso, todo aquele que depois dum tal acto possuir, por herança, compra, permissão, ou por outras quaisquer vias, qualquer parte da terra que estiver anexa, e pertença aos domínios dessa república, deve recebê-la com a condição que lhe está anexa ; a qual vem a ser, a de se submeter ao governo da república, debaixo de cuja jurisdição ele se acha, tanto quanto o está qualquer súbdito dela.
121. Porém, como o governo tem uma jurisdição directa unicamente sobre a terra, e se estende ao seu possuidor, (antes dele se ter com efeito incorporado à sociedade,) somente enquanto ele a habita e desfruta; a obrigação que tem qualquer, em virtude de tal usufruto, de se submeter ao governo, principia e acaba com o usufruto; de maneira que em qualquer tempo que o proprietário, que não deu ao governo senão um tal consentimento tácito, deixar, por doação, venda, ou por outra qualquer maneira, a dita possessão, tem a liberdade de se ausentar, e de incorporar-se a qualquer outra república, ou de convir com outros em principiar uma de novo, in vacuis locis, em qualquer parte do mundo que eles achem livre e desocupada. Pelo contrário porem, aquele que uma vez prestou o seu consentimento, por meio de qualquer convenção ou declaração expressa, para pertencer a alguma república, está perpétua e indispensavelmente obrigado a ser e permanecer inalteravelmente sujeito a ela, e nunca mais pode estar na liberdade do estado natural; excepto se por alguma calamidade o governo a que ele estava sujeito vem a dissolver-se, ou se ele for excluído por algum acto público.
122. O acto porém dum homem se sujeitar ás leis dum país qualquer, de viver sossegadamente, e gozar de privilégios e protecção a sombra delas não o faz membro dessa sociedade: isso é somente uma protecção local e homenagem devida a todos e da parte daqueles que, não estando em estado de guerra, entram no território pertencente a um governo qualquer, a todas as partes do qual se estende a força das suas leis: porem isto não constitui um homem membro dessa sociedade, ou um súbdito perpétuo dessa república, mais do que constituiria hum homem sujeito a outro, em cuja família ele julgou conveniente habitar por algum tempo; ainda que ele, durante a sua estada era obrigado a condescender com as leis, e a sujeitar-se ao governo que aí achou: e assim nós vemos que o acto dum estrangeiro viver toda a sua vida debaixo doutro governo, e de gozar os seus privilégios e protecção, não obstante estar ele obrigado, mesmo em consciência, a submeter-se à sua administração, tanto quanto o está qualquer estrangeiro naturalizado, não o constitui súbdito ou membro dessa república. Nada, senão uma convenção positiva, pacto, ou promessa expressa, pode fazer o homem um membro ou súbdito de uma republica. Esta é a minha opinião acerca do princípio das sociedades políticas, e do consentimento que torna hum homem membro de uma república.


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Jean Jacques Rousseau, Do Contrato Social ou Princípios de Direito Público

VI - Do pacto social

Eu imagino os homens chegados ao ponto em que os obstáculos, prejudiciais à sua conservação no estado natural, os arrastam, pela sua resistência, sobre as forças que podem ser empregadas por cada indivíduo a fim de se manter em tal estado. Então esse estado primitivo não pode continuar a subsistir, e o género humano pereceria se não mudasse sua maneira de ser.
Ora, como é impossível aos homens engendrar novas forças, mas apenas unir e dirigir as existentes, não lhes resta outro meio, para se conservarem, senão formar, por agregação, uma soma de forças que possa prevalecer sobre a resistência, pô-los em movimento por um único móbil e fazê-los agir de comum acordo.
Esta soma de forças só pode nascer do concurso de diversos; contudo, sendo a força e a liberdade de cada homem os primeiros instrumentos de sua conservação, como as empregará ele, sem se prejudicar, sem negligenciar os cuidados que a si se deve? Esta dificuldade, reconduzida ao meu assunto, pode ser enunciada nos seguintes termos.
''Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja, de toda a força comum, a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual, cada um, unindo-se a todos, não obedeça, contudo, senão a si mesmo, e permaneça tão livre como anteriormente." Tal é o problema fundamental cuja solução é dada pelo contrato social.

As cláusulas deste contrato são de tal modo determinadas pela natureza do acto, que a menor modificação as tomaria vãs e de nenhum efeito; de modo que, embora nunca tenham sido formalmente enunciadas, são as mesmas em todas as partes, em todas as partes tacitamente admitidas e reconhecidas, até que, violado o pacto social, reentra cada qual nos seus primitivos direitos e retoma a liberdade natural, perdendo a liberdade convencional pela a que renunciara.
Estas cláusulas, se bem entendidas, reduzem-se a uma única, a saber, a alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, em favor de toda a comunidade; porque, primeiramente, cada qual entregando-se por completo e sendo a condição igual para todos, a ninguém interessa torná-la onerosa para os outros.
Além disso, feita a alienação sem reserva, a união é tão perfeita quanto o pode ser, e nenhum associado tem mais nada a reclamar; porque, se aos particulares restassem alguns direitos, como não haveria nenhum superior comum que pudesse decidir entre eles e o público, cada qual, tomado nalgum ponto o seu próprio juiz, pretenderia em breve sê-lo em tudo; o estado natural subsistiria, e a associação tomar-se-ia necessariamente tirânica ou inútil.

Enfim, cada qual, dando-se a todos, não se dá a ninguém, e, como não existe um associado sobre quem não se adquira o mesmo direito que lhe foi cedido, ganha-se o equivalente de tudo o que se perde e maior força para conservar o que se tem.
Portanto, se afastarmos do pacto social o que não constitui a sua essência, acharemos que se reduz aos seguintes termos: "Cada um de nós põe em comum sua pessoa e toda a sua autoridade, sob a direcção suprema da vontade geral, e recebemos, ainda, cada membro como parte indivisível do todo."
Nesta circunstância, em vez da pessoa particular de cada contratante, este acto de associação produz um corpo moral e colectivo, composto de tantos membros quanto a assembleia de vozes, o qual recebe desse mesmo acto sua unidade, o seu eu comum, a sua vida e a sua vontade. A pessoa pública, formada assim pela união de todas as outras, tomava outrora o nome de cidade , e toma hoje o de república ou corpo político, o qual é chamado por seus membros: Estado, quando é passivo; soberano, quando é activo; poder( puissance), quando comparado aos seus semelhantes. No que respeita aos associados, adquirem colectivamente o nome de povo, e chamam-se particularmente cidadãos, na qualidade de participantes na autoridade soberana, e súbditos, quando submetidos às leis do Estado. Mas estes termos confundem-se frequentemente e são tomados um pelo outro. É suficiente saber distingui-los, quando empregados em toda a sua precisão.


HISTÓRIA DAS IDEIAS POLÍTICAS
Docente
José Esteves Pereira
Monitora
Isabel Ribeiro

08.05.07 Sessão nº 15
Sumário
1. Perspectivas de “contrato” social: Hobbes, Locke e Rousseau
2.. a) John Locke: Estado de natureza e sociedade política. b) Poder legislativo, executivo e federativo.
3. a) Contrato social, soberania, e governo. b) a Lei e o legislador.c) Formas de governo; d) a religião civil.
Bibliografia recomendada
Michel Troper, Contrat Social, art. “ Encyclopaedia Universalis »
John Morrow, História do Pensamento Político Ocidental, Lisboa, Publicações Europa-América, 2007, pp. 54-56; 95-96;216-220..
Jean Jacques Chevalier/Yves Guchet, As Grandes Obras Políticas de Maquiavel à actualidade, Lisboa, Publicações Europa-América, 2004, pp. 145-174

John Locke(1632-1704)

Recursos na Internet:
John Locke
http://www.iep.utm.edu/l/locke-po.htm
http://en.wikipedia.org/wiki/Two_Treatises_of_Government
Jean Jacques Rousseau
http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/investigacao/conviteleitura.htm
http://disciplinas.arauto.uminho.pt/filosofia_social_politica/lcs/Trabalhos/Rousseau2.ppt
Texto integral :Do Contrato Social(tradução brasileira)
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv00014a.pdf

Sunday, May 06, 2007

HISTÓRIA DAS IDEIAS POLÍTICAS
Docente
José Esteves Pereira



Monitora
Isabel Ribeiro




Thomas Hobbes(Malmesbury, 5 de abril de 1588 – Hardwick Hall, 4 de dezembro de 1679)
03.05.07 Sessão nº 14
Sumário
Leitura comentada de alguns excertos do Leviatã, de Thomas Hobbes
Apoio da Monitora Isabel Ribeiro
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"Nenhuma grande filosofia pode ser reduzida à mera expressão do seu tempo, das vicissitudes e contradições da história que lhe é contem­porânea. A filosofia política não é excepção, apesar da sua maior proximi­dade da trama da história e dos conflitos da sociedade. Mas uma grande filosofia política, como aquela que tem no Leviatã a sua versão final e o seu coroamento, é sempre uma resposta, embora pessoal e inventiva, aos problemas postos pela sua contemporaneidade. No caso de Hobbes, estes problemas são os problemas do estado moderno. Formado a partir da dis­persão de poder e da relativa anomia do feudalismo medieval, o estado moderno recoloca no centro do palco social duas realidades ao mesmo tempo velhas e renovadas: por um lado as leis civis e por outro lado a figura do soberano. Nos novos estados unificados, estes dois elementos são ambos indispensáveis factores, na nova existência política que então se desenha e articula na maior parte da Europa.
Entre as duas ordens de factores desde sempre se travou um bem conhecido conflito, do qual o triunfo final do parlamentarismo sobre o absolutismo, do governo de leis sobre o governo de homens, como já no século XVIII se dizia, veio a ser o longínquo desenlace. Não é errónea a tradicional vinculação da política hobbesiana ao absolutismo, mas tão importante como apontar esse aspecto, sem ambiguidades, é reconhecer que tal nunca representou uma adesão ou uma subserviência ao absolutismo dos Stuarts, ou de qualquer outro poder político existente".


in Joâo Paulo Monteiro, Prefácio á Tradução portuguesa do Leviatã, IN-CM, 3ºa ed. 2002.


1651

Edição on line http://socserv.mcmaster.ca/econ/ugcm/3ll3/hobbes/Leviathan.pdf

Edição audio: http://www.spokennetwork.com/Title.aspx?titleId=8731&srch=leviathan

Edição utilizada na aula:
Thomas Hobbes, Leviatã, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 3ª edição(2002)
http://www.incm.pt/servlets/search?p=1005692


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“A vontade, a arte, o artifício desempenham um papel central no sistema de Hobbes. Para Aristóteles, o homem era naturalmente sociável, naturalmente cidadão (Zoon politikon, animal político); a sociedade política era um facto natural. Estupidez, responde Hobbes: a natureza não colocou no homem o instinto de sociabilidade; o homem não procura companheiros senão por interesse, por necessidade; a sociedade política é o fruto artificial de um pacto voluntário, de um cálculo interesseiro.
A trasladação a um terceiro, por contrato aprovado «entre cada um e cada um», do direito natural absoluto que cada um possui sobre todas as coisas, eis o artifício que constituirá os homens naturais em sociedade política. A vontade única deste terceiro (que pode ser um homem ou uma assembleia) vai substituir-se à vontade de todos e representá-los a todos. Este terceiro é, pela sua parte, absolutamente estranho ao contrato pelo qual a multidão se obrigou para seu benefício. Nenhuma obrigação o liga..." Tal é a origem deste grande Leviatã, ou, melhor dizendo, deste deus mortal ao qual devemos, com a ajuda do Deus imortal, a nossa paz e a nossa protecção, Porque, armado com o direito de representar cada um dos membros da Commonwealth (civitas, Estado), detém por isso tanto poder e força que pode, graças ao terror que inspira, dirigir as vontades de todos para a paz no interior e para a ajuda mútua contra os inimigos do exterior"

Hobbes não inventou a teoria do contrato em matéria política. Existia já uma ideia muito velha, que se pode fazer remontar a Epicuro e mesmo mais atrás. Era um aspecto da pesquisa racional - tão importante na história das ideias políticas - da origem do Poder. Uma pesquisa deste tipo fora geralmente dominada pelo pensamento reservado de enfraquecer o Poder, de o limitar fundamentando racionalmente os direitos dos súbditos face aos seus. Os teólogos da Idade Média tinham, na verdade, distinguido dois contratos. Pelo primeiro, dito pactum unionis ou societatis, os homens isolados do estado de natureza constituíam-se em sociedade. Pelo segundo, dito pactum subjectionis ou de submissão, a sociedade assim constituída, transferindo ou alienando os seus poderes mediante certas condições, dava-se um senhor, um soberano( ver http://topicospoliticos.blogspot.com/2004/10/estado-de-direito-o-que.html).

Se os monarcómacos( http://en.wikipedia.org/wiki/Monarchomachs ) do tempo das guerras de religião, contra quem Bodin edificara a fortaleza da soberania absoluta e indivisível, invocavam o segundo contrato, era para pregar uma partida aos príncipes infiéis à verdadeira fé. Estes príncipes, tendo violado as condições do pacto de submissão, já não tinham direito à obediência dos seus súbditos; estes podiam depô-los, eventualmente matá-los como tiranos (tiranicídio). No início do século XVII o alemão Althusius( http://www.acton.org/article.php?article=21) e o holandês Grotius( http://oregonstate.edu/instruct/phl302/philosophers/grotius.html) propõem interessantes teorias do contrato: corporativa no primeiro, individualista no segundo. Hobbes vem trazer uma concepção inteiramente nova. Bodin definira rigorosamente a soberania, descrevera as suas características, mas coibiu-se de lhe procurar a origem: ela era, como Deus, porque era. Como, pois, fazê-la sair de um contrato sem a enfraquecer? Hobbes cometeu a audácia de fundar no contrato uma soberania absoluta e indivisível, mais intransigente que a de Bodin. Chega lá rompendo com o dualismo anterior, fazendo de dois contratos um só. Ensina que por um só e mesmo acto os homens naturais constituem-se em sociedade política e submetem-se a um senhor, a um soberano. Não contratam com este senhor, mas entre eles. É entre eles que renunciam, em proveito do senhor, a todo o direito e a toda a liberdade que conduzirá à paz. Estão ligados: o senhor a que se deram não está ligado. Hobbes escapa assim ao que fazia (como o viu Gierke) a grande fraqueza do dualismo anterior: um germe de conflito inevitável entre dois direitos da multidão erigida em «pessoa», em «povo», e o soberano, órgão da personalidade do Estado.

Jean Jacques Chevallier/Yves Guchet, As Grandes Obras Políticas de Maquiavel à actualidade, Lisboa, Publicações Europa-América, 2004, pp.67-68.